Entre os muitos tipos humanos sobre a Terra, há os que amam odiar. Viciam-se
na ira e nos seus filhotes - o rancor, a mesquinharia, o isolamento, a
grosseria, a amargura, o deboche. Os brasileiros estamos expostos a doses
cavalares de hostilidade, professada com paixão inapelável por um personagem
fundamental nesses dias de Copa: ele mesmo, Dunga. O técnico da seleção
mergulhou no fel, e com ele conduz seus dias - e os nossos - na África do
Sul. Privatizou a grife esportiva mais famosa da Terra como se a ele
pertencesse exclusivamente e, embriagado de raiva, distribui estupidez por
quem lhe cruza o caminho. E, o horror, contaminou nosso jogo.
A mazela vem de longe. Volante de estilo opaco e resultado eficiente, Dunga
esculpiu, à custa de muita perseverança, trajetória vencedora no futebol.
Suas pernas grossas, de pés excessivamente voltados para dentro,
semicurupira dos pampas, o conduziram pelos campos do planeta em jornadas
gloriosas, do Mundial de Juniores de 1983 à Copa do Mundo de 1994 e por
vários clubes do Brasil e do exterior. Em todos os lugares, na vitória, no
empate e na derrota, teve como companheiro o ódio difuso, dirigido a
inimigos que só ele enxerga, e a quem vive para destruir.
O emblema dessa história está tatuado no ápice de sua trajetória. Capitão do
tetra, subiu a tribuna do Rose Bowl, na Califórnia, para receber a Copa do
Mundo - e emoldurou a cena com uma torrente de palavrões. Como bem observou
o jornalista Marcelo Barreto, Bellini e Mauro ergueram a taça sobre a cabeça,
Carlos Alberto a beijou, Cafu recebeu-a no alto do púlpito - Dunga a xingou.
A vingança parecia, afinal, consumada, mas a luta recomeçou no instante
seguinte, e não terminará jamais, por travada contra adversários que
inexistem. Só ele não percebe.
Agora, empossado na seleção como antídoto heterodoxo para o veneno do
descompromisso que, diagnosticaram os cartolas, matou o Brasil em 2006, o
técnico neófito, de experiência zero, radicalizou a truculência. À razão de
(muitas) patadas, ignora a torcida, despreza a alegria do DNA nacional e
fecha-se na lógica mafiosa abrigada no tal grupo. Por ele, sacrifica o
prazer do jogo, esmaga a beleza, massacra a paixão e tortura a plateia.
Tudo resultado de uma obsessão que remonta à adolescência do treinador,
dedicada a antecessores dele na seleção, jogadores apaixonantes, mas, de
canarinho, derrotados. Quis o destino que Zico, Falcão, Sócrates, Júnior,
Leandro, Cerezo e outros não conquistassem título algum pelo Brasil - mas
tivessem mesmo assim morada eterna no coração da torcida. Os brasileiros
somos inapelavelmente apaixonados pela beleza que marca suas biografias em
campo. Os lances de 1982 serão relembrados à eternidade, como os mais belos
de uma equipe desde a maior de todas, a de 1970. Muito além do ganhar e
perder, o time da Copa da Espanha é uma espécie de filho pródigo, que não dá
certo na vida, mas vira o favorito.
Dunga não se conforma. Nos corredores dos bunkers pelo qual se esgueira no
comando da seleção trancada, costuma repetir um bordão, como um humorista
desinspirado: "Não ganharam nada, nem nas divisões de base!", berra,
histriônico. O sujeito indeterminado é conhecido de todos: a geração de
1982. Está correto - a turma boa de bola perdeu dois Mundiais, pouco
participou de Copas América, não existia a Copa das Confederações. Os
prontuários dos alvos da obsessão viraram um prato cheio para a vingança do
professor.
Só que a cruzada masturbatória cai no vazio da falta de adversários. Os
perdedores da Espanha engoliram o choro, sublimaram a tristeza e seguiram
seus caminhos. Esculpiram carreiras festejadas em clubes, são cultuados por
torcidas variadas, acumularam títulos e fama, fortuna e prestígio. Engrossam
sem desconforto as homenagens aos mais bem-sucedidos em Copas, porque a vida,
afinal, é muito mais do que ganhar ou perder uma taça. Assim, para Dunga,
sobra o nada como alicerce do rancor.
No verão europeu de 2006, a patologia emergiu num convescote em Munique. O
hoje técnico, então comentarista de TV (entre jornalistas, que tantas
urticárias lhe causam), estava entre os convidados da festa de abertura da
Copa da Alemanha, que tinha como ponto alto um desfile dos campeões do mundo.
No saguão do Dorint Sofitel, cinco estrelas da Bayerstrasse, ao lado da
estação ferroviária da capital da Baviera, reuniram-se lendas da bola como
Bellini, Ghiggia, Paulo Cesar Caju, Breitner, Bebeto, Bobby Moore, Passarela.
Num dado momento, Dunga interrompeu a conversa com o capitão de 1958, num
carrinho verbal merecedor de cartão amarelo:
- Nem adianta procurar aqueles jogadores que vocês da imprensa adoram. Aqui
só tem campeão! - vociferou, com o mesmo olho vidrado e sorriso trancado que
exibe nas coletivas n'África.
(O hoje técnico reconheceu o blogueiro, então comentarista do Sportv e
assumido defensor dos craques brasileiros. Daí a provocação, que desembocou
na foto ao lado, com Bellini e o repórter Antonio Maria Filho.)
Alguns interlocutores ficaram sem entender, e o capitão do tetra seguiu em
frente. Desfilou com os campeões na Allianz Arena, sem saber que, meses
depois, assumiria a seleção brasileira. No cargo, as neuroses acentuam-se a
cada dia. Ressurgem em flertes com regimes racistas e totalitários - "Não
posso falar da ditadura pois não vivi aquela época, assim como não posso
ficar falando da escravidão" -, que materializam, de lambuja, a triste
ironia da barbaridade saída da boca do filho de uma professora de história.
Teimam no elogio constrangedor (para quem ouve) a tiranos bandidos, como
Robert Mugabe - "No Zimbábue, vi crianças uniformizadas, educadas".
Vivem na imposição de uma rotina que, de tão autoritária, conseguiu a proeza
de incomodar a Fifa, entidade que está longe de ser um esteio da democracia.
E Dunga levou pitos públicos, que o forçaram a afrouxar um pouquinho os
grilhões dos craques brasileiros, o chamariz mais poderoso do negócio Copa.
"Sim, a seleção é minha, porque não é a da maioria dos presentes",
arriscou-se, já na África, no estilo que, agora, com a bola e os problemas
rolando, virou uma muleta para ele. Nas entrevistas que é obrigado a
conceder, ataca os jornalistas como estratégia para não tratar do que é pago
para fazer. Bobo é quem cai na arapuca. Mas aqui, o treinador acumula uma ou
outra vitória.
Os sintomas aparecem também nas escolhas que formaram sua lista. Agarrado a
um punhado de jogadores inegavelmente vencedor, trancou-se a novidades que
poderiam lhe facilitar a vida e proporcionar alguma felicidade ao distinto
público. Levou um grupo sem opções de mudança, que joga todo igual, com
variações mínimas.
A oferta de mudança radical tem nome e apelido: Paulo Henrique Ganso. É
verdade que, num calendário espremido, não houve tempo para testar o jovem
talento do Santos. Mas está longe de ser problema insolúvel para uma cabeça
mais criativa. Dunga poderia ter se permitido conversar com o craque e seu
técnico - Dorival Jr, profissional sério até prova em contrário - para saber
da possibilidade de levá-lo. Poderia encontrar-se com o jogador uma, duas,
dez vezes, e apostar. (A recente operação de joelho do inquilino da camisa
de Pelé não serve como desculpa; o procedimento se deu apenas para
aproveitar o intervalo na temporada.)
A lista da Copa é uma cabeçada de 23 jogadores. Se Ganso sucumbisse à
pressão, ficaria lá, sujando roupa como figurante sem fala nos treinos, um
kleberson qualquer. Se desabrochasse, seria candidato a solução. Mas não. Na
filosofia de Dunga, improviso e mudanças de última hora estão
permanentemente banidos.
O desempenho meia-bomba de Kaká na estreia ganhou, assim, status de trapaça
da sorte, diante das escolhas do treinador. A seleção vai na força de quem
sempre ganhou no jeito (até em 1994, com Romário e Bebeto), no retrospecto
que faz os adversários hesitarem, no time da defesa sólida e ataque pedestre,
vítima, entre outros, do autonaufrágio de Adriano - ausência que, aliás, é
um acerto do professor. Pode perfeitamente ganhar, como o fez em duas Copas
América e na última Copa das Confederações. Aí, o técnico vai se dar bem na
alta aposta que fez. Mais do que ninguém, não pode fracassar, sob pena de o
mundo cair-lhe na cabeça.
Mas se o hexa vier, não resolverá. De novo, o eterno vingador vai blasfemar
o mundo e as estrelas, os punhos cerrados como nos tempos em que corria
atrás da bola. Batman sem coringa, não descansará, para recomeçar sua luta
sem fim nem sentido, de apaixonado pelo ódio.
Dunga pode ganhar, mas, por pecados que são todos seus, jamais conseguirá
vencer. |